Você só não pode morrer ou ficar tetraplégica

06/08/2020

A primeira vez que eu vi o meu filho fui invadida por um amor que eu não consigo descrever. Apesar de ter pacientemente esperado ele nascer, já que aos 24 anos ele me fez ficar deitadinha numa cama por 6 meses e meio, para garantir a sua gestação, não posso explicar a emoção de vê-lo pela primeira vez. Naquele momento eu tive certeza de qua a minha vida como eu a conhecia, não existia mais. Havia um divisor profundo da minha relação com a vida. Eu já não era mais uma, havia algo muito especial a mais, o meu filho.

Eu sempre quis ser mãe, contudo não imaginava o impacto e a força que o nascimento daquele pequeno ser humano faria em minha vida. Por ele eu sou capaz de lutar contra o mundo; pelo seu sorriso me viro do avesso; por seu bem estar equilibro quantas mil funções simultâneas forem necessárias.

Muitas vezes, ao vê-lo doentinho, mesmo que por um período curto e temporário, eu pensava que queria que fosse comigo. Eu sempre tive a ilusão, confesso, de que se houvesse algum problema, que este fosse comigo. Ao menos eu achava que assim eu o protegeria.

Eu me esqueci de algo muito importante, que o amor por aqueles que nos são mais significativos faz parte do sentido da vida. Por um momento, eu esqueci do que é ser filha e de como o bem estar dos meus pais é importante para mim. Não avaliei com cuidado que não importa de quem é a dor, quando se ama alguém que adoece, a dor passa a ser de todos, mesmo que na pele de um só.

Ao descobrir o meu tumor, me reservei. Eu não queria assustar o meu filho, eu não queria fazê-lo sofrer. Não havia motivos para acender uma preocupação diante do desconhecido. Só que não se esconde por muito tempo de alguém de 15 anos nada, muito menos de um alguém extremamente perspicaz.

Estávamos no período mais restritivo da quarentena e eu estava saindo para fazer exames. As perguntas de estranhamento com o meu comportamento não paravam: porquê você está saindo tanto? Que tantos exames você está fazendo?

Desviei do assunto, mudei o enfoque dos motivos que me levavam ao médico, tentei deixá-lo longe da minha angústia. Porém, diante do pedido de biópsia do mastologista, eu tomei a mais acertada e difícil decisão da minha vida: contar ao meu filho que eu podia estar doente.

Ele me ouviu atentamente, cada palavra que eu disse foi acompanha por olhos atentos e ao mesmo tempo perdidos. Eu já não sabia mais como reagir a ele. De repente, como num terremoto interno, ele pulou do sofá e com gestos fortes e desajeitados me disse: "você só não pode morrer ou ficar tetraplégica! O resto eu não faço questão, eu te amo sem peito, sem cabelo e sem forças, só não posso perder você".

Meu coração se apertou, fiquei olhando muito sem saber que rumo tomar. Eu sabia que estava tudo confuso dentro dele, havia um sorriso nervoso, misturado com uma ansiedade agoniada. Eu previa que muito ainda seria processado em sua mente, só não imaginava que passaríamos por tantas fases diferentes.

As duas semanas seguintes foram estranhas, entre a biópsia e o diagnóstico, não parecia que estava acontecendo nada. Não sei se era negação ou medo, mas ele simplesmente não tratava do assunto. Eu sentia que ele até evitava.

Porém, o diagnóstico veio. Confesso que não me contive. A leitura da palavra carcinoma no documento me fez desabar e eu não consegui me segurar, eu chorei. Não apenas chorei, eu simplesmente não conseguia parar de chorar.

Meu filho me abraçou forte, tentou descobrir informações sobre o diangóstico e andou de uma lado para o outro. Pedi desculpas por não ser forte o suficiente, por não conseguir me conter. Foi quando, com toda a doçura do mundo, ele me disse para eu não pedir desculpas por ser humana. Me disse ainda que poderíamos conversar como adultos, que eu não precisava protegê-lo de tudo. Ele me abraçou.

Eu fiquei contente, mas também preocupada. A adolescência é uma fase difícil, são tantas emoções que se passam e é natural que, diante de um diagnóstico como esse, haja o medo. Depois daquele dia eu passei a conversar mais com ele, mas eu sentia que ainda não estava tudo bem. Dentro de mim algo me dizia que a pergunta mais importante estava guardada dentro dele.

Fui vendo o meu filho ficar quieto, calado e não querendo falar com os amigos. Ele simplesmente não estava conseguindo contar o que estava acontecendo para outras pessoas que ele gosta. Mesmo quando pressionado pelos amigos, que não sabiam dos acontecimentos, ele se guardava.

Percebi que algumas amigas queridas, por ato de vontade e amor, passaram a ligar para ele e conversar. O pai, a avó, todos devagar foram se juntando. Eu tentei ajudar também e liguei para alguns pais de amigos dele, contei o que estava acontecendo e pedi que me apoiassem nessa jornada. Afinal, os amigos também precisavam ser preparados para poder ajudar.

Minha preocupação maior veio quando ele demonstrou estar sem paciência para ouvir qualquer coisa que se relacionasse ao câncer. Um aperto veio no meu peito, será que ele passaria a negar a doença? Rejeitaria pensar no assunto?

Acho que tudo isso virou uma mistura forte demais dentro dele e, enfim, ele me procurou. A pergunta foi simples o suficiente para virar todos os meus sentimentos do avesso e, por alguns segundos, o ar fugir do meu pulmão. A aflição na voz dele me impactou:

"Mãe, eu preciso aproveitar esses dias com você como se fossem os últimos?"

Uma lágrima escorreu involuntariamente do meu rosto e o meu estômago se revirou vinte vezes dentro de mim. Eu sempre disse que filho não vinha com receita e que eu cuidava do meu com base nos meus instintos e no amor. Mas, naquele momento, como eu queria uma receita. Uma formação em psicologia, qualquer coisa.

Mas o fato é que a vida não nos prepara para situações como essa.

O meu nervoso se transformou em amor e energia para enfrentar o mundo inteiro, se for preciso. Um sorriso doce se apoderou de mim, segurei o rosto dele e, olho no olho, disse que eu não tinha controle sobre a vida, mas que eu lutaria com todas as minhas forças contra essa doença. E um abraço profundo selou esse compromisso.

Passei a explicar para ele cada passo que estava sendo tomado, cada decisão que havia sido realizada. Expliquei detalhadamente a cirurgia, o pós operatório e falei sobre os meus medos pessoais. Como uma amiga me disse, "é importante nos respeitarmos, vivermos, sentirmos e assim aprendermos a lidar com os nossos medos, para então vencermos".

Meu filho voltou a sorrir, não pela certeza do caminho certo, mas pela certeza de que estará ao meu lado para o que der e vier. Sinto que ele precisava saber tudo o que está acontecendo e ouvir que essa luta eu não perderia. E eu não vou! 

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