Série turca sem legenda e os gatilhos emocionais
Essa semana eu vi meu primeiro filme sério desde que descobri o câncer. Pode parecer estranho, mas isso é motivo de muita comemoração. Fiquei muito contente com essa realização, que me ajudou a perceber que isso, junto com outros fatores são o começo de uma recuperação emocional.
Mesmo lidando relativamente bem com todas as surpresas que aconteceram comigo desde junho desse ano, minha saúde mental ficou muito abalada. Por mais que o câncer de mama tenha altos graus de recuperação e o meu caso não seja um dos piores, impossível não pensar sobre diversos assuntos diferentes. A minha sensação é que eu comecei a ver um filme da minha vida, em que valores, histórias, escolhas, amores, sensações e o significado da vida-morte-vida apareceram juntos e misturados.
Todas as vezes que eu fechava os olhos, uma mistura de cenas passadas se cruzavam na minha mente. Referências de diferentes pessoas e sentimentos, muitas vezes antagônicos. Era como se tudo fosse muito real o tempo todo, me jogando para um aprofundamento constante no meu maior "buraco" interno. Passei a remexer cada pedacinho de mim.
Isso não abria lugar para mais nada. Como colocar mais informação numa mente em profundo questionamento interno? Uma mente com tantos medos e inseguranças diante da doença, bem como repleta de dúvidas sobre a capacidade de resiliência.
Até o não tratamento foi pensado. É muito simples dizer para a outra pessoa que está passando por um desafio desses que ela deve se tratar, porém o que a pessoa realmente sente?
Eu tive dúvidas se eu seria resiliente o suficiente, se eu conseguiria me reinventar de novo após tantos desafios físicos e emocionais. Cheguei um dia a chorar muito e dizer para algumas pessoas, inclusive ao meu filho, num domingo a princípio feliz, que eles teriam que me carregar para o hospital, que eu não iria. Não sei, me senti tão vulnerável diante disso tudo, eu não queria escolher definhar para depois me refazer. Havia muito medo desse processo.
Não suportando tanta realidade, eu escolhi a abstração. Cada pessoa reage de um jeito ao impacto de tantas adversidades, eu escolhi ver séries turcas sem legenda em meu tempo livre, mesmo sem entender nada de turco, nem mesmo uma palavra.
Pode parecer loucura, mas o meu cérebro ficou confortável com isso, minhas emoções paravam de brigar internamente enquanto eu ficava focada na tela, com algo sem conteúdo emocional, apenas imagens que retratavam emoções humanas. Consegui acompanhar mais de uma série inteira por meio de gestos, e o pior, acho que entendi tudo.
As séries turcas foram seguidas de filmes de ficção, bem distantes da realidade. Qualquer coisa que sugerisse uma conexão com a vida real, eu simplesmente descartava, até essa semana quando eu vi um filme sobre a segunda Guerra Mundial na perspectiva de Wilson Churchill. Isso foi fantástico, pois me mostrou que o meu primeiro gatilho de sair da realidade está sendo superado.
Acho que isso tem muita relação com outro aspecto que me assustava muito, a quimioterapia. Trata-se de um procedimento invasivo, que pode gerar muitos efeitos colaterais complicados e doloridos. Toda vez que eu falava sobre a quimioterapia o meu estômago se revirava.
Recentemente, durante a recuperação da cirurgia eu acabei parando na emergência de um hospital com dores violentas. Durante uma das tomografias que foram realizadas a enfermeira me disse que eu poderia sentir um gosto de metal na boca, rapidamente me veio na cabeça as diversas descrições de outras mulheres que passaram pela quimioterapia e me descreveram essa sensação. Ali na maca, eu chorei de medo do futuro.
Por três vezes eu fui ao médico fazer o meu plano de tratamento e por três vezes não foi possível realizar porque os resultados dos exames apresentavam divergência. A única informação que eu tenho até o momento é que eu não precisarei de radioterapia, que provavelmente serão seis meses de quimioterapia e que por cinco anos farei hormonioterapia. No entanto, eu não sei qual o tipo de quimioterapia eu irei fazer, são vários tipos e cada uma com um efeito.
O desconhecido agonia, paralisa, dá medo. Eu não sei como o meu corpo vai reagir ao remédio e isso estava me assustando muito. Cada pessoa tem um efeito diferente, pois segundo o médico é a morte das células boas que impactam o corpo. Para ele, o cuidado com a saúde física e mental ajudam demais a reduzir os efeitos colaterais. Ele me pediu muito que trabalhasse as minhas emoções, que tivesse acompanhamento terapêutico e fizesse ioga. Gostei dele.
Eu sabia que eu precisava mudar esse gatilho e entender a quimioterapia como algo bom para mim. Um remédio que vai prevenir que o câncer contamine outras partes do meu corpo.
O curioso é que foi o desapontamento com o comportamento de uma pessoa querida que me gerou o gatilho que eu precisava. Após uma semana intensa, revirando os meus sentimentos após o meu primeiro filme sério, eu me senti decepcionada demais com alguém muito importante. Eu percebi esse sentimento e então compreendi que eu estava depositando demais minhas energias no meu apoio externo.
Sem a minha família e os meus amigos nesse momento, eu teria enfrentado momentos muito mais difíceis do que os que eu encontrei. Ter apoio emocional é essencial e eu agradeço profundamente cada gesto de afeto que eu recebi. Porém, nesse processo eu esqueci de lembrar que eu sou mais forte que o câncer e que ele não me define.
Eu sou uma composição de histórias, sentimentos e escolhas e eu escolho mudar o meu medo. Vou pegar esse estranho elemento, que vem me assombrando e jogar fora. Pode até ser que ele me atormente de vez em quando, mas eu sou mais forte que ele e com essa certeza me encaminho com segurança para essa nova etapa.
Será fácil? Quem dera. Só sei que esse medo e essa doença não me definem e eu não vou deixar eles me guiarem.