Redescobrindo os significados de ser mulher
Eu cresci num mundo em que as princesas eram donzelas em busca de um principe e todas as meninas colocavam vestidos longos e lindos para serem quase bonecas. Enquanto isso eu me vestia de mulher maravilha e todos os dias, com a certeza de que tinha muito poder, eu ia para a escola com aquela fantasia, pronta para derrotar qualquer adversidade.
O tempo foi passando e paulatinamente a luta externa foi tomando outros formatos, entrelaçando os conceitos de feminismo com a proteção do meio ambiente e forjando nas minhas bases as declarações pelo direito da mulher ser quem ela deseja sem ficar presa a estereótipos. Passei a ouvir mais as pessoas diferentes em suas diferenças, tentei me colocar no lugar delas, porém nunca imaginaria que eu mesma teria que quebrar construções internas e simbólicas sobre o feminino. Minha luta agora se tornou sobre o meu ressignificado interno do que é ser mulher.
A primeira constatação que eu tive é que é preciso ser muito consciente do seu poder feminino para enfrentar as reconfigurações conceituais e físicas que o câncer de mama traz. São muitos desafios ao longo do processo e nenhum simples. Além disso, a apreensão da possibilidade da morte ou mesmo os danos físicos que o câncer produz me assustavam muito. Quem seria eu após tudo isso?
O diagnóstico de câncer não é algo pronto e acabado. Primeiro vem o choque com a confirmação da doença. Não há para aonde fugir, não há erro no diagnóstico, ele é real. Depois paulatinamente vão surgindo as surpresas, que impõe desafios duros às emoções.
O primeiro susto foi saber que dois tipos de câncer me acompanhavam, o in situ e o invasor. O primeiro, na minha forma leiga de entender, poderia ser mais facilmente contornado, pois totalmente "preso" na célula, ainda não possui capacidade de ser espalhar. O segundo, o invasor, é aquele cara que se rebelou e não quis ficar dentro da caixinha, um perigo para mim devido a sua habilidade de metástase.
Fiquei pensando se aquilo era real ou se eu estava apenas num grande pesadelo. Minha vida, sempre destinada ao sorriso, às trilhas, aos esportes e a todos os tipos de aliança com a beleza e plenitude da vida, agora enfrentava o desafio das metástases.
Não bastasse isso, a notícia mais assustadora: todo o meu seio direito seria retirado. Que pancada inesperada, de repente eu fiquei sem chão. O seio não é apenas um elemento do corpo feminino, ele é a expressão de vários pontos da feminilidade, que vão desde a amamentação à sexualidade. Ele tem relação profunda com o feminino e com as construções sociais que ao longo dos anos elaboramos.
Ainda me recuperando desse impacto, nova notícia trouxe também um novo susto, os marcadores da biópsia ficaram prontos. O tipo de câncer indicado ali, independente dos demais resultados, me traz outro baque, a impossibilidade de ser mãe novamente a não ser que preventivamente pense em guardar óvulos, parar o tratamento, dentre outros detalhes complexos e difíceis. Bom, ao menos não mãe biológica.
Aos 41 anos e com um filho de 15 anos, não pensava efetivamente em uma nova maternidade, mas a impossibilidade me chocou profundamente. A certeza de que essa pode não ser mais uma opção impõe uma outra reflexão sobre o tradicional conceito de mulher como berço e origem da vida, algo tão socialmente encrustado nas reflexões que nos cercam e que para mim, em especial, sempre foi muito importante.
Digo para mim pois cada pessoa tem uma relação diferente com a maternidade, eu sou aquela que desde muito novinha dizia para todos ao meu redor que tinha certeza apenas de que seria mãe. Talvez influenciada pelo amor que eu tive na infância ou pelo desejo de extravasar todo o meu amor interno, não sei dizer, a maternidade sempre foi uma certeza na minha vida.
Junte-se a isso as preocupações com a quimioterapia. São muitas. Meu médico me falou para pensar na quimio como um remédio que vai salvar a minha vida e não nos efeitos colaterais. Certamente eu agradeço a existência desse medicamento, porém não dá para não pensar nos efeitos que ele causa e não constatar nos sentimentos profundos o medo do desconhecido.
Hoje existem diferentes tipos de quimio, algumas menos agressivas que outras. Ainda não sei qual vai ser aplicada a mim, se é que precisarei de uma, mas como eu estou relatando a desconstrução do tradicional conceito de feminilidade, outro desafio se impõe com a quimio: a provável perda dos meus cabelos (sem mencionar os demais efeitos colaterais).
Cultivo meus cabelos há anos, ele é parte da minha identidade. Cada um de nós tem elementos que nos identificam, os meus cabelos falam muito sobre mim. Perdê-los, mesmo que temporariamente, exigirá de mim uma nova reconfiguração de mim mesma. No espelho, precisarei ressignificar a minha identidade.
Seio, maternidade e provavelmente a perda dos meus longos cabelos dão um frio na barriga e a dúvida sobre a minha capacidade de resiliência. Agradeço ter podido ouvir tantas outras mulheres, ter participado de círculos que discutiam a mulher selvagem e o feminino, e que me prepararam de alguma forma para esse futuro iminente.
Foram as palavras de uma pessoa pela qual eu tenho um grande carinho que me fizeram parar e pensar. Ele me disse "sua reconstrução pode ser linda e pode ter muita gente querendo fazer parte dela, de muitas maneiras diferentes....há muito mais em você do que um peito ou do que um corpo, e você sabe disso".
Tão simples e tão poderosas essas palavras. Ele nem tem ideia da profundidade do que alcançou.
Como eu mencionei, eu passei a minha vida toda lutando pelo feminismo em sua plenitude, me solidarizando com as mulheres e ajudando, sempre que pude, a cada uma da maneira que me foi possível. Hoje essa ajuda vem para mim, transvestida de diversos significados e pela mão de diversas pessoas lindas, que amorosamente estão me dando diferentes tipos de ajuda e se colocando ao meu lado nessa luta.
Que essa luta seja apenas o início de algo muito maior, uma renovação pessoal, que me permita ajudar muitas mulheres, que assustadas como eu estou, precisam apenas da certeza de que não estão sozinhas. E que essa luta, que é pela vida, seja também uma ressignificação interna do feminino.
Eu sei quem eu entro nessa luta, mas estou muito curiosa para saber quem eu vou sair.Imagem Nelson Ramalho