Quando a memória falha
Eu tenho uma certa admiração por filmes e séries com tramas complicadas, em que a percepção dos fatos está nos detalhes. Admiro especialmente as pessoas que são capazes de criar histórias intrigantes, que fazem com que o telespectador deseje deduzir os próximos passos, acompanhando minuto a minuto as intrincadas relações que se estabelecem.
Há uma genialidade em montar os fatos. Uma capacidade cognitiva que sempre me chama a atenção, pois sempre quis ter uma percepção mais acelerada em torno da observação, processamento e transformação da informação que me é apresentada. Existe uma graça em perceber o ambiente.
Apesar de não ser tão rápida quanto eu gostaria ou de ter essa sagacidade construída pela ficção, eu sempre tive a habilidade de perceber o ambiente, apoiada em um processo cognitivo forte, numa memória relativamente boa e na desenvoltura em focar em temas específicos, independente do contexto externo.
Recentemente, tive uma não tão agradável surpresa quando, após a primeira sessão de quimioterapia, eu comecei a perceber que este sentido ora tão aguçado em mim estava um pouco mais distante. Comecei a perceber que não conseguia terminar algumas frases, lembrar o nome de algumas coisas e a sentir uma dificuldade gigantesca de prestar a atenção em qualquer assunto minimamente mais complicado. Por umas duas semanas pensei que eu estava desenvolvendo outra doença, como demência, associada ao câncer. Me assustei, eu não tinha associado esse processo todo à quimioterapia. Ninguém havia me falado de algum tipo de efeito colateral relacionado à capacidade cognitiva.
Demorei um pouco a reagir, confesso. Fiquei meio perdida na minha própria confusão. Porém, como sempre faço, resolvi falar sobre isso com as pessoas. Eu sempre acho que conversando com outras pessoas, de alguma forma, as pistas para a solução de um incômodo desconhecido aparecem. Resolvi começar as minhas trocas com outras pacientes oncológicas.
Foi muito bom quando já na primeira conversa, a pessoa me disse que quando passou pela quimioterapia se sentiu literalmente burra, parecia que as informações não se comunicavam. Conforme ela foi me relatando as percepções dela sobre o período do tratamento fui me identificando, fazia todo o sentido o que ela me explicava. Eu estava na mesma situação. Pelo visto o remédio estava também atingindo a minha capacidade de perceber o mundo.
Continuei as minhas pesquisas empíricas, perguntando e questionando outras mulheres e descobri que esse é um efeito colateral bem mais comum do que eu imaginava. Mas por que ninguém me orientou sobre isso? Ou melhor, por que as pessoas em geral não comentam sobre isso? É angustiante algumas vezes não conseguir ser quem você sempre foi, especialmente quando não se sabe a profundidade desse esquecimento.
Ao perguntar para as enfermeiras que me atendem e orientam sobre o tratamento, elas me disseram que em geral eles não explicam esse efeito para não assustar as pessoas. É algo recorrente, grande parte dos pacientes oncológicos relatam essa perda de conexão com diversos aspectos cognitivos, porém terminado o tratamento voltam ao "normal".
Passado o susto e agora mais consciente das minhas limitações, aceitei que a Andréia que eu conhecia tirou férias durante o período de quimioterapia. Essa que ficou aqui já começa a conversa com as pessoas explicando que tem lapsos de memória e dificuldade de foco. Isso facilita muito as coisas.
Pode parecer bobagem ficar falando para todo mundo que eu estou temporariamente diferente em termos cognitivos, mas isso faz uma diferença incrível para mim. As pessoas abaixam a expectativa pelas respostas rápidas e "corretas", compreendem o meu momento e me ajudam quando as palavras não aparecem ou a frase não consegue ser completada.
Não é bom passar por isso, as vezes reclamo em voz alta mesmo. Eu percebo bem o que está acontecendo e isso me irrita algumas vezes. Contudo, acredito que com as pessoas ao meu redor compreendendo isso, surge menos uma auto cobrança de ser "normal" nesse momento.
Apenas acho que deveríamos falar mais sobre isso. Muita gente conhece diversos efeitos colaterais da quimioterapia, porém o impacto cognitivo não está entre eles e gera muito desconforto. Ter consciência que isso é parte do processo assusta no início, mas alivia com o tempo, em especial quando se sabe que é temporário. Além disso, prepara também quem está em volta, que não fica com medo que a pessoa esteja com outros problemas.
A sagacidade está de férias, mas como tudo é impermanente, logo, logo ela estará de volta.