O momento mais difícil e mais bonito da minha vida

28/08/2020

Já faz um tempo que eu escuto algumas pessoas me dizerem que a vida é paradoxal. Eu escutava o que estava sendo dito, mas não necessariamente entendia. Até hoje. Vivo o momento mais difícil e ao mesmo tempo mais bonito da minha vida, e me pergunto como isso é possível.

Desde a descoberta do câncer, diferentes percepções emocionais se transformam constantemente dentro de mim. Passei de uma pessoa muito assustada a alguém que segue o máximo possível com um sorriso no rosto diante das adversidades que aparecem, além de muito grata por vivenciar o cuidado das pessoas que direta ou indiretamente me cercam.

O pós-operatório da cirurgia foi extremamente difícil nos primeiros dias. Cheguei a comentar com algumas pessoas que eu conheci o significado da dor física. Algo que eu não imaginava que pudesse ser desse tamanho, por várias razões. Poderia ser porque eu nunca tivesse operado grandes áreas ou talvez porque a cirurgia em si fosse muito agressiva. Ou talvez, essa é a minha tese, de que a dor tenha vindo do fato de que foram duas cirurgias em uma.

Taí algo extremamente interessante, a medicina vem evoluindo no cuidado com nós mulheres. Casos como o meu que exigem mastectomia radical podem ser suavizados com a inserção de um expansor no seio. Mas o que significa isso? Significa que após perceberem o quanto era mutilador para uma mulher sair de uma cirurgia reta e sem seios, médicos e pesquisadores encontraram uma forma de ajudar as mulheres logo na cirurgia.

Com base na observação de como a gravidez ocorre e de como há um aumento da pele da barriga, que ocorre naturalmente para o bebê se desenvolver, igualmente fazem isso com o seio. Eles colocam um expansor logo na cirurgia, que após os tratamentos complementares, é paulatinamente preenchido com soro até que posteriormente algumas outras cirurgias reconstruam o seio capturado pela doença.

Isso é um alívio incomensurável para quem passa por uma situação dessas, pois é muito impactante, não vou negar, se ver sem parte do seu corpo. Hoje entendo um pouco mais as pessoas que perdem membros, mesmo que o meu seja o mais "simples" de ser perdido.

Enfim, acho que a composição das cirurgias geraram uma dor indescritível, que de alguma forma eu estava avisada por uma pessoa da rede de apoio a pacientes oncológicos que eu faço parte, só não imaginava o que significava. Fico contente que essas dores tenham passado rápido e a minha recuperação física esteja sendo tão boa e tão positiva. Acho inclusive que três fatores importantes e contribuíram para isso.

O primeiro deles veio com as orientações que eu recebi de outras mulheres que passaram pela mesma situação. Algumas dicas foram essenciais.

Uma dessas mulheres me recomendou que eu me permitir ser ajudada. Às vezes, após anos de independência, a nossa tendência é querer controlar tudo. Contudo, a recuperação desse tipo de pós-operatório exige ajuda para ir ao banheiro, tomar banho e até comer, o que nos primeiros dias era impossível sozinha. Outra me orientou para não chegar perto de fogão, coisas quentes ou qualquer atividade que mexesse o braço, pois apenas o tempo e o cuidado recuperariam meus movimentos. Por fim, um conselho aparentemente bobo, mas incrível, foi no sentido de que eu não perdesse os mimos comigo, ou seja, que o perfume, o batom, os brincos ou qualquer outro detalhe que me fizesse me sentir bonita e não doente me acompanhasse. Adorei, pois por todo o pós-operatório estou lentamente inserindo o brinco, a unha vermelha, a trança no cabelo e outros caprichos.

O segundo fator que contribuiu muito para diminuir a dor e fazer com que cada dia eu ficasse melhor foram os remédios. Nunca agradeci tanto às pesquisas científicas e aos profissionais de saúde que se dedicam a nos deixar sem dor. Por uma semana utilizei um remédio a base de morfina e codeína, associado a dois outros, para conseguir ficar bem. Inclusive brinquei muito que a maior felicidade da minha vida foi descobrir que esses remédios existem. Afinal, ninguém consegue ficar bem com dor, é impossível.

Agradeci muito pela oportunidade de poder ter esses remédios e que eles existem.

Porém o terceiro fator é o que eu considero fundamental para a minha melhora com qualidade e que torna tudo isso uma contradição de sentimentos, já que está tudo junto e extremamente encaixado.

Enquanto o meu corpo físico está sendo tratado por profissionais qualificados e com todo o cuidado, conforme as orientações que me foram feitas, o meu progresso emocional também está acontecendo de uma forma linda, graças a uma rede indescritível de carinho e apoio. Algo que eu não imaginava que era tão poderoso quanto é.

Eu sempre ouvi falar de pessoas que se curaram de doenças, traumas e vícios com base em apoios emocionais fortes. Esses relatos estão em todo o lugar: livros, literatura, música e estudos científicos. Sendo eu filha de uma psicóloga, mais do que ninguém não poderia duvidar do poder de uma mente bem cuidada, só que eu não conhecia a amplitude do significado disso que descreviam.

De fato eu não imaginava o quão poderoso é o apoio carinhoso das pessoas que nos cercam. Nem que havia tanta beleza nas pessoas, como eu venho tendo o privilégio de conhecer, ou mesmo que o mundo tinha tanta gente disposta a partilhar o melhor delas para ver o outro bem. É um momento especial esse.

Apesar de sempre apostar no afeto e na gentileza entre as pessoas como algo a ser cultivado e respeitado, confesso que saí desanimada do ano de 2019. Foram tantos acirramentos de rixas, brigas e desentendimentos entre pessoas, pelos motivos mais banais, que tudo indicava que as feridas internas de cada um eram mais relevantes que o bem estar coletivo. Não havia certo ou errado, mas uma progressão inacreditável de emoções desgastantes.

Contudo, em 2020 eu fiquei doente. Uma doença complexa, com muitos caminhos e etapas a serem seguidos na busca da manutenção da vida. Uma doença em que o tratamento descaracteriza o seu hospedeiro, antes mesmo dele se sentir doente. Acho inclusive que isso é dos fatores bem complicados da doença, pois a tecnologia avançou tanto que é possível descobrir a doença antes do efeitos malignos dela e isso significa que todas as decisões de tratamentos posteriores, que são agressivos, são tomadas com as pessoas ainda relativamente saudáveis (dependendo do estágio de descoberta da doença).

O fato é que desde a minha cirurgia, e aí faço esse recorte desse meu processo pessoal, é o meu momento mais vulnerável até agora. E nesse momento, em que em precisava tanto de ajuda, eu fui coberta de um afeto e um cuidado que estão sendo inacreditavelmente importantes para a minha cura.

Não houve um momento que eu fiquei sem auxílio. Minha comida foi feita e quando eu precisei, me deram comida na boca, pois eu não conseguia me movimentar. Tive vigília noturna para os meus remédios, sempre com alguém cuidadosamente dormindo na cama ao lado e acordando ao mínimo suspiro de dor. Recebi auxílio para ir ao banheiro, tomar banho e lavar o cabelo (melhor sensação da vida lavar o cabelo).

Não houve um dia que eu não recebi mensagens extremamente carinhosas de pessoas preocupadas. Recebi flores lindas que iluminaram os dias e chocolates, como é bom acarinhar a alma com chocolate, rs. Até uma saia linda eu recebi, cuidadosamente enviada por amigas queridas que sabendo da minha descaracterização física, se preocuparam que esteticamente eu me sentisse linda.

Como não considerar esse um dos momentos mais bonito da minha vida? No momento mais difícil e de maior vulnerabilidade que eu vivi, também encontrei o mais bonito das pessoas. E não apenas de pessoas que me conhecem, mas também daquelas que de alguma forma já enfrentaram um desafio na vida ou simplesmente tem o coração e a alma abertos ao outro.

Ainda tenho muitos passos pela frente no caminho da cura, mas já aprendi que mesmo o pior momento pode ser o mais repleto de beleza. Só espero que na minha vida eu possa retribuir tudo o que tenho recebido, numa verdadeira corrente de cuidado e com aquilo que me faz me sentir tão humana, que é esse desejo de querer o bem.

Semana que vem vou saber os próximos passos dos meus tratamentos. Sigo física e emocionalmente mais forte do que eu imaginava. Obrigada.

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