Descobrindo o câncer: medos e receios do desconhecido em tempos de pandemia
Comecei a quarentena da COVID com um susto e uma determinação. Eu estava preocupada com o cenário internacional da doença, as ausências de infraestrutura no Brasil, as milhões de pessoas sem recurso para sobreviver e a angústia dos que sofrem com a solidão. Além disso, dentro de mim pulsava uma necessidade de repensar os meus caminhos até aquele momento, me reencontrar como mulher, profissional e militante de causas sociais. Então, iniciei um mergulho profundo no autoconhecimento e na minha busca interior, acreditando que o meu fortalecimento interior me ajudaria a definir as lutas sociais que eu faria em seguida.
Me interiorizei, conversei e li muito sobre muitas coisas diferentes. Passei nesse período a reavaliar uma série de comportamentos pessoais e expectativas relacionadas a mim e a outras pessoas. Estava seguindo um caminho de aprofundamento da alma quando durante o banho, com o cuidado que eu tenho comigo mesma, passei a mão pelo meu seio.
Algo diferente estava ali, era o meu seio, mas tinha algo mais, um ponto mais duro num formato de uma bolinha de gude. Levei um susto, dei meia atenção, revirei meus pensamentos, tentei direcioná-los para outro lugar.
Mas a aflição me perseguiu. Tentei então pensar no meu usual exagero de cuidado e que talvez aquele caroço pudesse ser alguma displasia devido à menstruação. Estávamos no meio do lockdown, pensei, ou quis pensar, que não havia muito o que eu pudesse fazer.
Porém, os poucos dias que se seguiram foram de um incômodo interno, eu sabia que precisava fazer algo. Mas com quem conversar? A quem perguntar?
O consultório do meu ginecologista estava fechado e eu não sabia a quem recorrer. Minha mãe, uma mulher forte e altamente sensível, estava lidando com mil problemas. Minha amiga querida havia perdido a mãe com câncer de mama, tinha dúvidas se devia falar com ela. O meu filho eu quis proteger.
A verdade é que a quarentena trouxe para os meus amigos a intensidade de tantos problemas e questões, açodando-os com desafios emocionais significativos, que eu fiquei preocupada em ser mais uma pessoa desesperada, sem certeza de nada e com medos a flor da pele.
O câncer de mama perseguia os meus medos desde que vi a minha tia falecer dolorosamente durante a minha adolescência. Os lampejos de lembrança inundavam a minha mente, afligindo minhas certezas.
Mesmo assim, comentei com duas amigas sobre isso, pensando alto como seria identificar um caroço no seio. As duas comentaram ter muitos nódulos nos seios e que isso era normal, mas que era importante eu ver com um médico. Minha amiga cuja mãe faleceu, a quem não resisti e abri minhas inseguranças, foi a que mais me impulsionou a ver um médico.
Atenta a tudo o que estava se passando, na primeira oportunidade que houve, com a semi abertura das atividades na cidade, tomei coragem e marquei o ginecologista. Eu esperava que ele dissesse que era uma displasia ou alguma coisa bem boba, já que os meus exames eram periódicos e a minha última consulta havia sido em outubro, estávamos em junho do ano seguinte. Contudo, não foi como eu esperava.
Ele não me assustou. Me disse que não devia ser nada importante, pois o caroço era móvel e isso era um excelente sinal. De qualquer forma, me indicou dois exames.
Apesar de ter me apegado à expectativa positiva, algo me martelava na cabeça para não deixar os exames de lado, como uma intuição forte que puxa a consciência o tempo todo para aquela informação. Não tinha outra escolha, eu devia fazer o exame, mesmo assustada com a possibilidade do resultado não ser como eu gostaria, mas na esperança de uma resposta positiva.
Esse exame foi importante, pois apesar da pessoa que fez a minha mamografia ter sido indiferente a mim e ao motivo pelo qual eu estava lá, a profissional que fez a ultrassonografia da mama foi totalmente atenciosa e zelosa. Na verdade, foi ela quem me deu o alerta do cuidado que eu deveria ter, primeiro com sinais e depois com o laudo.
Ao fazer o exame, o sorriso gentil dela se tornou um ar preocupado, li nas expressões dela uma atenção diferente, não abordada com palavras. Ela demorou um pouco mais do que o normal no exame e, ao final, desejou que eu ficasse bem. Eu saí dali com a certeza de que algo não estava bem, a expressão dela havia me dito tudo.
Sem saber o que fazer ou com quem falar sobre os meus medos, voltei para casa, sorri para o meu filho, entrei no chuveiro e chorei. Eu chorei meus medos, as minhas incertezas, as minhas inseguranças e a minha dificuldade de contar para quem quer que seja que eu estava morrendo de medo. Chorei pelo que eu ainda não tinha sido e pelo que eu queria ser. Chorei pela incerteza do que estava por vir e da tristeza que eu poderia causar. Chorei muito.
Saí do banho, abri um vinho e liguei num filme turco sem legendas. Eu não entendo nada de turco, por isso apenas deixei as lagrimas delicadamente caírem sob o meu colo. Ao meu filho, disse que estava emocionada com um filme, não queria vê-lo sofrer e nem ter, como eu, o medo de algo tão impreciso.
O laudo saiu e, como eu imaginava, indicava um alerta. Não na mamografia, como usualmente esperado, pois ela não indicava nenhum problema. Vim a descobrir depois que, por eu ter uma mama densa, a mamografia não era mesmo o melhor exame para indicar tumores. Porém, a ultrassonografia marcava uma massa de 1,6 cm a ser melhor examinada, no resultado BI-RADS 4.
Meu medo se acirrou, comecei a tentar falar com algumas pessoas, mas eu só ouvia que eu devia ficar tranquila, que não ia ser nada e que eu estava adiantando o resultado. Eu comecei a ficar num misto de raiva e apreensão. Por que as pessoas com quem eu conversava não me escutavam? Positivo ou negativo o resultado, aquilo me fazia tremer por dentro, a história da minha tia me fazia tremer por dentro. Eu queria um acolhimento.
É tão curioso, naquele momento o sentido de empatia mudou para mim. Eu não estava esperando uma mão diante de um diagnóstico certo, eu estava esperando um colo para a incerteza que avassalava a minha alma e me deixava aflita sobre o futuro. Eu queria o acolhimento e me revoltei com os conselhos para eu relaxar.
Para piorar as minhas aflições, uma colega de trabalho e pessoa com quem compartilhei diversos momentos profissionais durante sete anos faleceu. Ela lutou bravamente contra um câncer de mama, que se espalhou pelo seu corpo e pouco a pouco foi exaurindo as suas forças. Eu a vi lutar bravamente e com coragem, por isso resolvi homenageá-la indo ao seu enterro.
Aquele ato foi um misto de sentimentos para mim. Ao mesmo tempo que eu me despedia dela, eu pedia a ela que compartilhasse comigo a força que ela teve diante de tantos desafios. Olhei para ela e torci para que a sua alma estivesse em paz e que iluminasse meus caminhos e dúvidas.
Voltei para casa e ainda silenciosa nas minhas descobertas, com o coração confuso, voltei ao médico. Ainda cauteloso com as palavras, ele me disse para não me preocupar com o laudo, não devia ser nada. Inclusive ele achava pouco cuidadoso o laudo indicar uma periculosidade que não parecia ser o caso, porém de qualquer forma me encaminhou para um mastologista.
Ali eu comecei a me preocupar com força. O medo, o susto e o desconhecido tomaram conta de mim e comecei a ligar para algumas pessoas. Eu realmente não sabia o que fazer. Eu queria andar, mas estávamos numa pandemia. Eu queria ficar só, mas eu estava trancada num apartamento com o meu filho, a última pessoa no mundo que eu gostaria de ver sofrer.
Então fiz o que eu achei ser possível, liguei para o pai do meu filho e contei o que poderia vir pela frente. Mais uma vez eu ouvi que eu devia ficar tranquila, que não seria nada. Eu não aguentei, eu gritei, disse que agradecia o cuidado dele com as palavras, mas que aquilo não me atingia. Vociferei todos os meus medos e inseguranças, deixando sair de mim tudo aquilo que me engasgava. Foi importante, eu precisava.
Ele me ouviu, entendeu meus medos, mudou. Daí então segurou a minha mão e disse que estaria comigo em qualquer situação e eu chorei. Era disso que eu precisava, apenas de um acolhimento ao meu medo, apenas saber que essa luta, qualquer que fosse, eu não estaria sozinha. Ele não saiu mais do meu lado.
Nesse momento eu me abri mais para tudo, para a minha terapeuta, meus amigos próximas e pessoas que eu sabia que poderiam me ajudar nesse momento de incerteza. Um dos meus amigos se preocupou tanto que logo encontrou um excelente mastologista, com especialidade em oncologia, e me fez prometer que eu ouviria mais de uma opinião.
Fui a dois mastologistas diferentes, os dois me disseram que eu não devia ficar muito preocupada, pois era um tumor móvel. O primeiro disse que tinha 30% de chance de ser maligno e o outro apenas 3%. Relaxei um pouco. Com essa última resposta e chances tão pequenas, talvez eu tivesse mesmo exagerando. Será que eu não me preocupava demais com as coisas?
Como ambos me mandaram fazer o mesmo procedimento, uma biópsia, eu resolvi tomar coragem e fazer. Mas algumas dúvidas ainda me afligiam: eu deveria contar para a minha mãe? Para o meu pai? Para o meu filho? E se eu tivesse exagerando como as pessoas diziam? Eu ia apenas assustá-los. No entanto, e se o resultado fosse positivo? Contar para eles já com uma resposta poderia ser muito doloroso. Eu só não queria vê-los preocupados, sofrendo por algo que eu não tinha certeza, uma vez que a quarentena já estava trazendo tantos desafios pessoais para cada um de nós.
Mesmo diante de todos os meus medos, eu resolvi contar. Cuidadosa e cautelosa nas palavras, eu fui me abrindo. E eles, cada um de sua forma, foram me mostrando serem mais fortes do que eu imaginava. Me acolheram e se colocaram ao meu lado. Meu filho, meu amor, me disse que era hora de pensar em mim e que ele queria que eu fosse honesta sobre tudo, pois já podíamos ter uma conversa de adultos. Ele, no auge dos seus 15 anos, me deu exemplos de força e doçura incríveis.
Fiz a biópsia, o pior procedimento que eu havia feito até aquele momento. Odiei. Eles pegam um instrumento, semelhante a uma arma com uma agulha longa e, após uma anestesia, dão "tiros" na mama para recolher um fragmento do tumor. Algo invasivo e ruim de se passar, mas também o prelúdio que anunciava algo muito importante: eu não tinha o controle que imaginava sobre o meu corpo. Meus conceitos de controle precisavam mudar.
O resultado da biópsia veio dois dias depois do
meu aniversário de 41 anos. Eu estou com câncer!